Epilepsia não é doença
Estima-se que 3% a 4% da humanidade tenha algum grau desse transtorno provocado por um descontrole dos sinais elétricos do cérebro. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a epilepsia afeta 50 milhões de pessoas no mundo - 3,5 milhões só na América Latina
Para entender o que é a epilepsia, o melhor mesmo é explicar tudo o que ela não é. Para começar, não é considerada doença porque pode ocorrer associada a várias outras alterações ou patologias do sis tema nervoso central (SNC). Atual mente, ela é definida como um transtorno que determina o aparecimento de um sintoma, a crise epiléptica. Também não se enquadra entre os distúrbios mentais, nem torna a pessoa inválida. Ao menos sete em cada 10 pessoas com epilepsia podem levar uma vida normal.
Há vários tipos de crise, mas todas são causadas pela mesma condição: uma mudança repentina nos sinais elétricos que as células do cérebro, os neurônios, mandam umas para as outras — essas ligações são o que a medicina chama de sinapses.
O cérebro funciona transmitindo eletricidade de um neurônio para outro. Quando se quer mexer um membro qualquer, por exemplo, há uma descarga elétrica na região motora cerebral correspondente que vai resultar no movimento. Na crise epiléptica, essa descarga nos neurônios é muito forte e fora de controle — e pode se manifestar em todo o cérebro ou em apenas uma área restrita.
A epilepsia pode ser determinada por qualquer causa que afete o cérebro, incluindo tumores e acidentes vasculares. Algumas vezes a propensão para a epilepsia é herdada — mas em geral não se conhecem as origens desse transtorno, que só se caracteriza quando as crises acontecem de tempos em tempos. Uma única crise não se encaixa na definição médica da epilepsia.
Imagens como em sonhos
Muita gente pensa que manifestação epiléptica é sempre cena de convulsão em que a pessoa cai, inconsciente e se debate com abalos e tremores generalizados. Nada disso.
Há eventos que passam despercebidos para quem não sabe do problema. “A crise pode ser focal, quando uma descarga elétrica excessiva atinge somente um grupo de neurônios do cérebro”, explica a médica Maria Luiza Giraldes de Manreza, coordenadora do Ambulatório de Epilepsia do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Se a região cerebral atingida for a motora, podem ocorrer sintomas como balanços e tremores, que afetam um braço ou perna. Se atingir a área visual, é comum haver alucinações, a pessoa vê imagens como se fossem sonhos.
Quando a descarga elétrica excessiva acomete todo o cérebro ao mesmo tempo, tem-se a crise generalizada. Neste caso, pode acontecer o que se chama popularmente de convulsão ou “ataque epiléptico”: a vítima perde a consciência, fica com os músculos enrijecidos (chamada de fase tônica) e depois se debate (fase clônica).
Outra forma de manifestação epiléptica generalizada é mais comum na infância. A criança só se “desliga” por alguns segundos, em uma reação conhecida como crise de ausência. Há casos em que a pessoa nem chega a perder a consciência, mas apresenta um sintoma motor brusco no braço ou na perna, é a crise mioclônica.
Manifestação precoce
Sabe-se que pelo menos 50% dos casos começam na infância ou adolescência. Nesse período, as crises mais comuns são as benignas: muitas vezes têm um fundo genético e ocorrem em crianças normais.
“A mais freqüente na infância é a epilepsia rolândica, que vem do sulco central do cérebro, também chamado área de Rolando”, diz a especialista Maria Luiza Giraldes de Manreza, autora do livro Epilepsia: infância e adolescência (Lemos Editorial). São crises que ocorrem geralmente à noite durante o sono em crianças com idades entre três e nove anos. Ao acordar durante a noite, a criança não consegue falar, porque sente um formigamento na boca, baba bastante — e geralmente está consciente e percebe tudo o que acontece. Em segundos ou minutos tudo pode passar, restando apenas uma leve sonolência, ou evoluir para uma crise generalizada, terminando em uma convulsão.
Na adolescência, é mais freqüente a epilepsia mioclônica juvenil: quando o jovem apresenta sinais motores, como “trancos”, ao despertar.
“Todos esses casos são tratados com medicamentos por um certo período, e a criança ou o jovem leva uma vida normal durante e depois do tratamento”, diz Maria Luiza.
É possível controlar as crises
Em torno de 70% a 80% dos casos são tratáveis com medicamentos que controlam as crises, e a todo momento surgem novas drogas antiepilépticas. A melhor maneira de evitar as crises é tomar a medicação de forma adequada, regularmente.
O problema é que, como em todo tratamento crônico, as pessoas às vezes esquecem ou então, por estarem se sentindo bem, interrompem os cuidados médicos — e aí as manifestações voltam. Cerca de 30% das pessoas com epilepsia não respondem aos remédios. Então, para eles, podese estudar a possibilidade de cirurgia.
O que causa o transtorno
Sabe-se que é possível nascer com predisposição à epilepsia ou adquiri-la ao longo da vida. “Pode-se dizer que existem duas formas de manifestação do transtorno”, diz Maria Luiza. Nas crises funcionais, não há lesões cerebrais ou antecedentes graves que possam explicar a reação. Essas costumam ser mais benignas e suspeita-se que em grande parte sejam de origem familiar, geneticamente determinadas. Já nas formas lesionais, há lesões cerebrais que podem ser causadas por anoxia (a pessoa fica muito tempo sem respirar e oxigenar o cérebro), traumatismo craniano, tumor, acidente vascular cerebral (AVC), inflamação, encefalite, meningite. Os dois picos de incidência da epilepsia ocorrem no primeiro ano de vida e após os 65 anos, neste caso por causa de AVCs.
Quanto dura uma crise
Cacoetes ou espasmos que perduram por horas não são epilepsia. As crises epilépticas chegam sem aviso e duram em média alguns minutos, com ou sem perda de consciência, e passam espontaneamente, em todas as idades. Os médicos orientam os familiares a esperar até cinco minutos para a crise passar. “Há casos em que ela se torna prolongada: é o estado de mal epiléptico, uma emergência médica. Mas isso é raro”, diz a especialista Maria Luiza, do HC. Uma em cada 20 pessoas tem uma única crise isolada na vida, o que pode ocorrer com usuários de drogas e crianças, quando estas têm febre. Mas nestes casos, não se trata de epilepsia.
Antes do procedimento, porém, o paciente passa por um exame específico para que os médicos verifiquem qual a área prejudicada com as descargas elétricas e se ela pode ser retirada, com segurança e sem prejuízos para outras funções vitais.
Há ainda a possibilidade de um tratamento menos invasivo, à base de dieta cetogênica (que preconiza uma diminuição de açúcar e um aumento de gorduras no cardápio diário).
“Essa dieta deve ser elaborada por um especialista (nutricionista ou nutrólogo) e só oferece bons resultados em crianças e em algumas formas de epilepsia”, alerta a especialista Maria Luiza Giraldes de Manreza.
Saiba Mais
• Mudanças hormonais na puberdade, no ciclo menstrual e na menopausa podem influenciar a quantidade ou o tipo de crises em algumas mulheres que tenham epilepsia. Pesquisadores ainda estudam a influência dessas alterações nos hormônios, buscando encontrar outras terapias para as crises, como o uso da progesterona natural.•Dormir pouco é o fator apontado pelos especialistas como desencadeador das crises mioclônicas em adolescentes. É isso mesmo: a meninada precisa descansar bem à noite.
• Quando alguém tem uma crise generalizada, é possível ajudar da seguinte forma: vire a pessoa de lado, para evitar que ela sufoque se vomitar. Acomode a cabeça da vítima, para que ela não se machuque ao se debater. Outra recomendação: nunca tente abrir a boca de quem está tendo a crise, pois a musculatura está travada e isso pode machucar.• Ninguém engole a língua em uma crise de epilepsia. Na primeira fase há espasmo muscular e a vítima de epilepsia pode, no máximo, em algumas vezes, morder a língua.
• Ainda sobrevive a crença de que a saliva de quem está em crise epiléptica é contagiosa. Desinformação pura: descarga elétrica nos neurônios não “passa” de uma pessoa para outra pela salivação.
• Quando alguém tem uma crise generalizada, é possível ajudar da seguinte forma: vire a pessoa de lado, para evitar que ela sufoque se vomitar. Acomode a cabeça da vítima, para que ela não se machuque ao se debater. Outra recomendação: nunca tente abrir a boca de quem está tendo a crise, pois a musculatura está travada e isso pode machucar.• Ninguém engole a língua em uma crise de epilepsia. Na primeira fase há espasmo muscular e a vítima de epilepsia pode, no máximo, em algumas vezes, morder a língua.
• Ainda sobrevive a crença de que a saliva de quem está em crise epiléptica é contagiosa. Desinformação pura: descarga elétrica nos neurônios não “passa” de uma pessoa para outra pela salivação.
Campanha Mundial "Fora das Sombras"
A epilepsia em geral não é um transtorno progressivo, do tipo que piora com o tempo. Isso dá aos adultos que têm essa condição a expectativa de uma vida normal. Quem tem epilepsia pode se realizar profissionalmente, tanto quanto qualquer outra pessoa. Ou até mais, se nos basearmos na história. A lista de personalidades que apresentavam o transtorno é extensa e inclui imperadores (como Alexandre, o Grande; Julio Cesar; Pedro I e Napoleão Bonaparte), o escritor brasileiro Machado de Assis, o filósofo grego Sócrates e o físico Isaac Newton. A relação de celebridades está no livro Epilepsia: da Antigüidade ao Segundo Milênio — Saindo das Sombras (Lemos Editorial), da médica Elza Márcia Yacubian, do departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Unifesp. Há uma tendência, com medo do preconceito, de a pessoa esconder que tem epilepsia. Por isso, “Fora das sombras” é o tema da campanha global da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Liga Internacional contra Epilepsia e do Comitê Internacional para Epilepsia. O objetivo é desmitificar o transtorno e obter melhorias em diagnóstico, tratamento, prevenção e aceitação social. O conceito engloba dizer que epilepsia é algo que se tem: alguém tem epilepsia, não existe a pessoa epiléptica. A Associação Brasileira da Epilepsia (ABE) promove reuniões para pessoas com o transtorno. E o Hospital das Clínicas (SP) dá atendimento no Ambulatório de Epilepsia, por meio de exames, diagnóstico e encaminhamento. As medicações são gratuitas nos postos do Sistema Único de Saúde (SUS). Mais informações: ABE (11 5549-3819,SP) ou Ambulatório de Epilepsia, do HC (11 3069-6341, SP).
fonte: revistasaude